Patentes de Software e Patentes Literárias
por Richard StallmanQuando políticos consideram a questão de patentes de software, normalmente estão votando às cegas; não sendo programadores, não entendem o que realmente fazem as patentes de software. Normalmente pensam que patentes são parecidas com a lei de copyright (“exceto por alguns detalhes”) — o que não é o caso. Por exemplo, quando perguntei publicamente a Patrick Devedjian, então Ministro da Indústria na França, como a França deveria votar na questão de patentes de software, Devedjian respondeu com uma apaixonada defesa da lei de direitos autorais, elogiando Victor Hugo por seu papel na adoção do direito autoral. (O termo enganoso “propriedade intelectual” promove essa confusão – uma razão pela qual não deve jamais ser usado.)
Aqueles que imaginam que seus efeitos sejam similares àqueles de direito autoral não compreendem os efeitos desastrosos de patentes de software. Podemos usar Victor Hugo como um exemplo para ilustrar a diferença.
Um romance e um programa moderno complexo têm certos pontos em comum: cada um deles é grande e implementa diversas ideias em combinação. Então sigamos a analogia, e suponhamos que lei de patentes houvessem sido aplicadas a romances no século XIX; suponhamos que estados como a França houvessem permitido a patente de ideias literárias. Como isso teria afetado a obra autoral de Victor Hugo? Como isso os efeitos de patentes literárias se comparariam com os efeitos de direito autoral literário?
Considere o romance Les Misérables, de Victor Hugo. Como ele o escreveu, o direito autoral pertencia somente a ele – ninguém mais. Ele não precisava temer que algum estranho o processasse por infração de direito autoral e vencesse. Isso era impossível, pois direito autoral cobre somente os detalhes de uma obra autoral, não as ideias nela incorporadas, e somente restringe a cópia. Hugo não havia copiado Les Misérables, assim ele não estava ameaçado por direito autoral.
Patentes funcionam de forma diferente. Patentes cobrem ideias; cada patente é um monopólio na aplicação prática de uma ideia, que é descrita na própria patente. Aqui está um exemplo de uma hipotética patente literária:
- Reivindicação 1: um processo de comunicação que representa na mente do leitor o conceito de um personagem que ficou na cadeia por muito tempo e se torna amargo em relação à sociedade e à humanidade.
- Reivindicação 2: um processo de comunicação de acordo com a reivindicação 1, em que o dito personagem posteriormente encontra redenção moral através da bondade de outro.
- Reivindicação 3: um processo de comunicação de acordo com as reivindicações 1 e 2, em que o dito personagem muda seu nome durante a história.
Se essa patente houvesse existido em 1862, quando Les Misérables foi publicado, o romance teria entrado em conflito com todas essas três reivindicações, pois todas essas coisas aconteceram a Jean Valjean no romance. Victor Hugo poderia ter sido processado e, se processado, teria perdido. O romance poderia ter sido proibido – de fato, censurado – pelo titular da patente.
Agora considere esta hipotética patente literária:
- Reivindicação 1: um processo de comunicação que representa na mente de um leitor o conceito de um personagem que ficou na cadeia por muito tempo e posteriormente mudou seu nome.
Les Misérables teria sido proibido por essa patente também, porque essa descrição também se aplica à história de vida de Jean Valjean. E aqui está outra patente hipotética:
- Reivindicação 1: um processo de comunicação que representa na mente de um leitor o conceito de um personagem que encontra redenção moral e então muda seu nome.
Jean Valjean teria sido proibido por esta patente também.
Todas essas três patentes teriam coberto e proibido a história de um dos personagens do romance. Elas se sobrepõem, mas não duplicam exatamente uma à outra, então todas poderiam ser válidas simultaneamente; todos os três titulares das patentes poderiam ter processado Victor Hugo. Qualquer um deles poderia ter proibido a publicação de Les Misérables.
Essa patente também poderia ter sido violada:
- Reivindicação 1: um processo de comunicação que apresenta um personagem cujo nome próprio é igual à última sílaba de seu sobrenome.
pelo nome “Jean Valjean”, mas pelo menos essa patente seria fácil de evitar.
Você pode imaginar que essas ideias são tão simples que nenhum escritório de patentes as teria concedido. Nós programadores somos frequentemente surpreendidos pela simplicidade das ideias que patentes de software reais cobrem – por exemplo, o Escritório de Patentes Europeu concedeu uma patente sobre a barra de progresso, e uma patente sobre aceitar pagamentos através de cartões de crédito. Essas patentes seriam risíveis se não fossem tão perigosas.
Outro aspecto de Les Misérables também poderia ter ocasionado problemas com patentes. Por exemplo, poderia existir uma patente numa apresentação ficcional da Batalha de Waterloo, ou uma patente sobre usar gírias parisienses em obras de ficção. Mais dois processos. De fato, não há limite no número de patentes diferentes que poderiam ser aplicáveis para processar o autor de uma obra como Les Misérables. Todos os titulares de patentes poderiam dizer que merecem um prêmio pelo progresso literário que suas ideias patenteadas representam, mas esses obstáculos não promoveriam progresso na literatura, somente o obstruiriam.
Porém, uma patente muito ampla poderia ter tornado todas essas questões irrelevantes. Imagine uma patente com reivindicações amplas como estas:
- Um processo de comunicação estruturado como uma narrativa que se estende por várias páginas.
- Uma estrutura narrativa por vezes se assemelhando a uma fuga ou improvisação.
- Intriga articulada em torno do confronto entre personagens específicos, cada um, por sua vez, preparando armadilhas para os demais.
- Narrativa que apresenta várias camadas da sociedade.
- Narrativa que mostra as entranhas de uma conspiração secreta.
Quem poderiam ter sido os titulares dessas patentes? Poderiam ter sido outros romancistas, talvez Dumas ou Balzac, que escreveram romances assim – mas não necessariamente. Não é necessário que se escreva um programa para patentear uma ideia de software, então se nossas hipotéticas patentes literárias seguissem o sistema de patentes real, esses titulares de patentes não teriam de ter escrito romances, ou histórias, nada – exceto pedidos de patentes. Companhias parasitas de patentes, empresas que nada produzem além de ameaças e processos judiciais, estão efervescendo hoje em dia.
Dadas essas amplas patentes, Victor Hugo poderia não ter chegado ao ponto de perguntar quais patentes poderiam levá-lo a um processo por usar o personagem Jean Valjean, porque ele não teria sequer considerado escrever um romance desse tipo.
Essa analogia pode ajudar não programadores a entender o que patentes de software fazem. Patentes de software cobrem funcionalidades, como definir abreviaturas num processador de texto, ou recálculo de planilhas na ordem natural. Patentes cobrem algoritmos que programas precisam usar. Patentes cobrem aspectos de formatos de arquivos, como o formato OOXML da Microsoft. O formato de vídeo MPEG 2 é coberto por 39 patentes diferentes nos EUA.
Assim como um único romance poderia ter incorrido em problemas com várias patentes literárias diferentes ao mesmo tempo, um programa pode ser proibido por muitas patentes diferentes ao mesmo tempo. É tanto trabalho identificar todas as patentes que parecem se aplicar a um programa grande que somente um estudo desse tipo foi feito. Um estudo de 2004 do Linux, o núcleo do sistema operacional GNU/Linux, encontrou 283 patentes diferentes dos EUA que pareciam cobri-lo. Isso quer dizer que cada uma dessas 283 patentes proíbe algum processo computacional encontrado em algum lugar das milhares de páginas do código fonte do Linux. À época, o Linux era cerca de um porcento de todo o sistema GNU/Linux. Quantas patentes existem que podem ameaçar o distribuidor de um sistema completo?
Um jeito de evitar que patentes de software prejudiquem o desenvolvimento de software é simples: não as autorizem. Isso deve ser simples, já que a maioria das leis de patentes têm provisões contra patentes de software. Elas normalmente dizem que “software em si” não pode ser patenteado. Mas escritórios de patentes ao redor do mundo vêm tentando distorcer as palavras e conceder patentes sobre ideias implementadas em programas. A não ser que isso seja bloqueado, o resultado deixará todos os desenvolvedores de software em perigo.
A primeira versão deste artigo foi publicada em The Guardian, de Londres, em 23 de junho de 2005. Ela focava na diretiva proposta de patentes de software europeia.
Este ensaio foi publicado em Free Software, Free Society: The Selected Essays de Richard M. Stallman.